18 de jul. de 2019

Dora, a noiva defuntada




Dora, raio de luz matinal, chamava o dia e despertava a alegria dos moradores do pequeno palacete, na velha São Paulo com laivos de fog londrino. Aos 17 anos, foi celebrado seu casório com Isidro, com taças de champagne ao alto, saúde e grande prole aos recém abençoados, festejos de pais, avós, primos, tios, amigos, sob o olhar equidistante do Padre Honorato, senhor guardião das hóstias e benções. Antes do recolhimento íntimo, cuja espera despertava curiosidades e indagações de ruborizar com ós e ais os convivas, a salva de prata adornada com fitilhos de coco, cheia de delicados bem-casados, foi passada entre os convivas. Beijo paterno na testa da filha, recadinho materno ao pé d’ouvido, a jovem e o marido seguiram escada acima para o quarto perfumado de alecrim. Ao clec da virada da chave, Isidro escutou uma pancada, som estranho no quarto cheio de prenúncios de boas coisas. Ao virar-se, só teve tempo de pegar a ponta do longo véu de um corpo defuntado, fogo-fátuo que escapava pela janela para o céu! De Dora, nenhuma notícia mais. Por um tempo correu à boca miúda que, de tão bela, nunca havia existido. De Isidro, sabe-se que ao morrer soltou a ponta do véu, que, como uma grande teia descolorida de aranha, cobriu o palacete e o sugava junto ao tempo corrosivo.
Adriana Gragnani
Junho 2019

14 de ago. de 2017

A toalha da mãe de alguém


Por onde passava, deixava um rastro de admiração. Suave, provavelmente doce? quase translúcida. Branca de sem sol. Via-se nela o azulado da anileira, que, se lhe dava formosura, também a vinculava a tradições da humanidade, acúmulo de sabedorias em tingir e colorir. Seu passado? Ninguém sabia. De onde viera? Alguns achavam que de um interior paulista ou de além-mar qualquer. Quando nascera? Ignorava-se sua idade. Quem sabe muito viajada já que se viam, na sua história revelada, pequenas flores aplicadas com ponto paris – “faz-se-lhe uma dobrazinha, alinhava-se a aplicação ao tecido e contorna-se com o ponto de Paris” – a cidade luz, momentaneamente, neste 2017, com luminosidade reduzida... E de seu sombreado conclui-se construída com linhas finas, de boa qualidade, o ponto sombra, com os quais se fazem “os mais delicados trabalhos, sobre organdi, trabalhando do avesso, as cores à transparência tomam uns tons de colorido muito fino.” Aqui e acolá, um bordado a cheio, terminando pequenos e mimosos galhos em pé de flor, no Brasil o ponto haste, que compõe tantos trabalhos. Ela chegou encolhida, dobrada e quase envergonhada pelas marcas destoantes dos vincos que não pudera esconder. Naquele dia sentiu-se feliz. Recebeu afagos carinhosos de mãos, que mesmo xeretas e curiosas, fizeram-na lembrar daquelas com as quais fora bordada. Novamente dobrada e guardada, por quantos dias, meses, décadas, permaneceria imóvel, com sua história a se perder?
Texto e foto Adriana Gragnani – agosto de 2.017

Referência de pontos – A Enciclopédia da Agulha, Lisboa, Portugal, Coleção Laura Santos, sem data.

22 de jul. de 2017

Guardador de Pé de Taça


De um belo galo cacarejante, de um reinado glorioso e único, fui reduzido a um reles guardador de pé de taça! Não me importa saber-me quase imortalizado em linho português, se moldado em linha fina e de bom gosto ou se já tenho mais de 7 décadas! De mandante  de poleiro, dono exclusivo de território, de onde cacarejava minhas vontades, virei tapetinho servil de um simples vítreo, material inorgânico, suporte para água ou para vinho. Não desperto mais quem dorme, nem de relógio me vejo útil. Guardador de pé de taça? Ora! Prefiro ter minhas penas em travesseiro, assombrando pela noite a pessoa que me fez tão imbecil!!!



25 de mai. de 2017

Fiapos de passado



A menina dormia, sem recordações precisas, porque era uma eterna menina. Dormia no seu cestinho de vime, vestidinho de barra plissada, certo incomodo, é bem verdade, para um corpo tão pequenino. Talvez invenção de quem não fosse mais menina. Dormia de olhos abertos, sempre abertos, eternamente fixos. E pela menina passavam mãos que se aproximavam do seu cesto feito em berço, dedos que mexiam e remexiam, procurando objetos que ela, tão menina, desprezava o sentido. Não se importava, não queria saber de pó e palha, de choro ou alegria. E ano após ano, a menina dormia, sem recordações precisas, por que era uma eterna menina. Mas as mãos desconhecidas trabalharam muito com linhas, agulhas, tesouras, dedal, tecidos, alfinetes, colchetes? que fizeram do cesto de vime a marca de um tempo já passado, onde as mãos eram sempre femininas, com fiapos em transformação demorada. O cestinho de vime já estava aberto. Seus segredos e magias já se espalhavam mundo afora.
Adriana Gragnani – maio 2.017

28 de mai. de 2016

Você já se deixou olhar por um pássaro?



A conversa saiu solta, num final de domingo. Olhares percebidos em outros olhares, imagens de poesia caseira. A doçura do olhar de uma vaca mansa, a tranqüilidade do ver um cisne deslizando em lago. Vôos urbanos, humanos, em comiseração à existência real e concreta. Vôos da ilimitada fantasia que permitem o reparar do assombroso do gesto, o divagar sobre vôos alheios. Inquietude de seres que vislumbraram no aéreo bicho o gotejar da vida livre e bela, que fez surgir, naturalmente, a questão: você já se deixou olhar por um pássaro? Do olhar, passou-se ao seu beijo, do beijo a um provável olhar. Sem qualquer metáfora de encobrimentos, ou por romantismo, por safadeza ou por simples pudor, de membros, de partes humanas, sem qualquer metáfora que permitisse a memória do olhar doce de passarinhas. Você já se deixou olhar por um pássaro? O aéreo bicho, a pequena ave? Pergunta singela que, viu-se depois, causou espanto, causou encanto. Já fui observado por um canário engaiolado. Com pena de mim ele ficou, com pena de minha liberdade, engaiolada internamente. O aéreo pássaro! um breve olhar, rápido e fugaz, como o matar do vôo pelo salto de um gato. Da indagação surgida, a fuga para questão nunca pensada: não, sempre fui olhante. Por rotinas, por vidas mais atentas, por existência de janelas, aberturas para fora, sim, todas as manhãs, um canário da terra, amarelo, se chegava a mim. Comia o que para ele eu servia, bebia a água encontrada, cantava, sempre. E dessa comunhão receosa, de tímidos traquejos corporais, nos fitamos, olhos nos olhos, eu e ele, aéreo pássaro Vivaldi. Envoltório impermeável a sons diversos, seletivo de formas e cores, de caminhos, vestimenta interna de maneirice de quietude, condição para o olhar de olhos ariscos, da pequena ave. De cores vivas, de azul, escarlate, verde, longas penas, suave penugem, bicos curtos, velocidade ímpar, entre tantos, um beija-flor que queria realizar sua busca, busca do néctar da flor que via refletida no vidro. Olhar perdido nas falsas transparências, mas que se deseja como certeiro e sincero, deixe a ave - pela fragilidade, porque é pássaro, pela leveza, porque é aéreo, pela beleza, porque canta - contrapor as mágoas, sem julgamento, sentir restos de mil sonhos já tidos, que seja nada, que seja dor, que sinta pena, que seja alento. Você já se deixou olhar por um pássaro? O aéreo bicho, a pequena ave? Pombinha, a mexer a cabeça para lá e para cá, o que você quer? Me namorar? Pombinha, eu já tenho um namorar. Quem é você, Pombinha?Um bem-amar sempre a voar? Você já se deixou olhar por um pássaro? O aéreo bicho, a pequena ave? Estranha sensação de olhar...olha-se o pássaro? Ou ele que fita?

Adriana Gragnani - maio/2001

Sonia Bianco – Monograma escolar


No cânhamo e na linha, em linha! E precisava ser azul, cor do céu de Maria. E o que almejavam as alunas? O casório de véu e grinalda, o enxoval todo marcado. Sofia de tal noivava com  Alberto Silveira? Bordava-se o monograma AS, pelo labor de S de tal, que nada de iniciais deixava. Mas nem tudo linear; nos cruzamentos de linhas, nos enviesados dos pontos, o sonho maior que o projeto dado. Do abecedário caprichoso, o início de cada vontade da jovem aprendiz: a de amor; b de como era bela!; c de carinho: d de desejo... fossem em treino de maiúsculas, ou das mínimas letrinhas, ia construindo seu grande plano de vida, transformando em belezas os ensinamentos recebidos, mesmo que fossem em linha azul, cor do céu de Maria.
Adriana out/ 2015
Monograma e foto de Sonia Bianco


19 de mar. de 2016

Abrindo o Baú...


Meu território amplo é de organza floreado com seda. Tão picada fui pela agulha da bordadeira, que resolvi me  recompor na cama e ser uma colcha. Vi amores de calor intenso; senti dedinhos de crianças. Há 7 décadas mais ou menos assumi essa identidade. Mostro-me à humanidade.

5 de jan. de 2016

Yasmine

 

Estou inquieto e não permito que minha bordadeira e narradora finalize os últimos retoques. Fahad é meu nome e parti da Grande Síria antes da queda do Império Otomano, chegando ao Brasil em 1910. Venho daquela vasta região denominada, pelos ocidentais, de oriente. Daquelas terras,  poucas lembranças trouxe: um caroço de azeitona, uma folha de cedro guardada em meu único livro contendo os rubaiyats. A riqueza cultural de meu território de origem, tão entranhada,  acompanhou-me e fez de mim quem fui.  Percorri povoados, vilas, casas de fazenda. Durante toda minha longa estadia nestas terras fui mascate. Muitas vezes entrava numa cidade anunciando:- compro roupa!  E dela saia dizendo: -vendo roupa! Bateu-me, certa feita, uma solidão de alma gêmea, de alguém que não chegara a conhecer e estranhamente me era presente.  Não arrisquei perder o sentido que me veio como querido. Durante minhas andanças por capitais nortistas, peguei, do cenário de um teatro, um manequim abandonado. Escolhi o mais refinado corte de uma peça oriunda da rota da seda, imaginei o tecido com cores do céu de meu pedaço natal, a cobrir o corpo do ser que senti como amado. À cabeça, protegendo do sol escaldante, a musseline, dando frescor a Yasmine, assim batizada por mim. Acompanhou-me durante os vinte últimos anos de minha vida. O retrato, em cenário esmerado, foi guardado junto com meus rubaiyats. Já finado e enterrado, apresento-me à sociedade brasileira pelas mãos de uma mulher, que é xereta e fez de mim um pedaço de linho bem bordado. Ao menos assim ela acredita.

Adriana Gragnani

Novembro de 2.015

31 de out. de 2015

Rememoração entre fitas e laços


Trinta e nove anos após chegar ao Porto de Santos, vinda do norte da Itália, com trabalho já arranjado em tecelagem paulistana, Eleonora assistiu ao casamento de sua filha, chamada pelo futuro marido de Li ou Lizinha. De ex-operária de tecido, já, então, com bom padrão de vida, no figurino rigoroso da época, aos poucos foi fazendo ou comprando as peças para o enxoval da filha, cujo noivado prolongou-se em parte da segunda guerra mundial até 4 anos após de seu término; o casório, em cerimônia bem montada, celebrado em manhã ensolarada de setembro. Véu sóbrio de tule, com pequenos bordados florais e barrados de renda francesa, a encobrir o vestido de cetim perolado, emolduram de felicidade o rosto cristalizado em fotos que ainda restam. Todo o belo conjunto harmonizado pela costureira portuguesa, Dona Margarida, moradora no Brás, com suas duas filhas, Dalva e Delfina. Do vestido e véu, sua filha lembra-se, pois com ele brincou em sua infância; da nobre costureira, recorda-se, pois dela ganhou um vestido de tule rosa, de várias saias, com delicados bordados, com fios prateados, ao completar 7 anos. Sua memória não guardou o destino dado ao vestido de noiva, hoje certamente nem mais trapos de uma festa esquecida pelo tempo passado. Contudo, uma lembrança ficou, bem guardada pela mãe, de primeiro embrulhada em papel de seda azul escuro, depois em papel de seda branco, sempre dentro de uma caixa de papelão. A filha, de posse de herança tão valiosa, com olhos de carinho observa as ligas de Maria Elisa, usadas naquele distante 7 de setembro de 1949. O destino fatal dos objetos será o definitivo desligamento da família que viu formar, indo parar no lixo. Pois, quem sabe sua história e seu valor? A quem interessa as histórias das miudezas de uma casa, dos sonhos de uma mulher? As ligas, de fitas de cetim azul claro, tem as bordas enfeitadas de delicadas rendas brancas, que na memória de sua atual detentora, constantemente a lhe pregar peças, sempre foram rendas amareladas pelo tempo. No arremate, pequeno enfeite de flor de laranjeira, feita de pano.  “Algo velho e algo novo/algo emprestado e algo azul*”. Quem sabe as pequenas flores, já velhas, não tenham vindo de Maria e de Elisa, as velhas avós de Maria Elisa, a Lizinha? E o azul, seria mesmo a cor do imenso mar, da pureza, do amor e fidelidade? O que teria sido emprestado dessa liga, que devolvido não faz falta? E com ela na mão, assim como fazia sua avó Eleonora com quem aprendeu a observar o pequeno, procura dar-lhe algum festejo, alguma exaltação, pois alguém, uma neta, um neto quem sabe? uma  bordadeira, uma louca talvez vai gostar de saber que Maria Elisa e Adolpho, no dia 7 de setembro, data histórica de independência, uniram-se em laços e ligas, para sempre.

“Something old and something new
Something borrowed and something blue*”.

(Estranhos Costumes de Casamento  e da Arte de Fazer a Corte – William J.Fielding, Editora Assunção Limitada, 1946).

Adriana Gragnani
Maio de 2014.

4 de out. de 2015

Eu, a toalha de linho verde


Os furinhos que você encontra ao me ver, nesse belo linho verde, não são de traças. Foram deixados pelo meu uso constante. Assim, se não tenho rugas, tenho marcas que indicam que fui apreciada. Sempre gostei de mim, pelo verde, pelo violeta, que carrego desde a primeira metade do século XX. Certamente alguém poderá encontrar algo semelhante, em antigas revistas. Quem sabe ao me ver, se recorde de cenas de histórias passadas. Não saberia contar quantos olhos, quantas mãos, xícaras, pratos e bules eu conheci. Sei que amparei alguns doces, espanhóis e italianos. Muitas vezes troquei impressões com as formigas que vinham atrás das migalhas; eu ria, faziam cócegas. Conte, confesse! Você ficou com inveja do meu belo ponto “ajour”, dessa minha bainha aberta, não é?
Adriana out 2015 

1 de out. de 2015

Seu Justo e Dona Branca


-Meu nome é Branca. Peguei do batom mais forte e engrossei meus lábios. O calor que aqui impera é propício ao colo à mostra. Saí de casa, fechei a porteira e de lembrança levo a cor de meu jacarandá florido.

-Meu nome é Justo. Apendi da vida varrendo a sacristia da igreja, desde pequeno. Cansei de ver. Fechei a porta e entreguei a chave ao padre.
Nos conhecemos no sopé da serra. Estamos sentados e nossas pernas roçam, sem querer. Resolvemos partir. Não iremos para Maracangalha porque não temos chapéu de palha.  Não iremos sós. Apenas fugimos do barulho ensurdecedor do silêncio. O motorista do caminhão que passou inda agora nos disse que parecemos tela de cinemascope. Uma foto 3 X 4  projetada ao imenso futuro. Deixamos de ser pequenos há tempos. Podem nos chamar de Seu Justo e Dona Branca, quase uma imagem de infância.

Duayer no traço do casal; Adriana no bordado e texto, em set 2015

21 de set. de 2015

Lenço do adeus


Adeus, pequeno lenço do adeus. De adeus de furtiva lágrima, de lábio quase cerrado, a esconder um sorriso, talvez. Adeus, pequeno lenço do adeus, que foi acenado em muitas chegadas. Adeus, lenço do adeus. Segue seu rumo ao futuro, com a única certeza de que não serás mais um lenço do adeus.
Setembro 2015

28 de jun. de 2015

Quadrado rosa bordado em azul

 

Sou um projeto executado e, portanto, findo. Sou uma peça quadrada, de 12 centímetros por 12 centímetros. Fui enfeitada com ponto a cheio, ponto sombra, crivo talvez, e um que no Brasil chamam de caseado. Sou estrangeira, mais que septuagenária. Desconheço a amplitude do projeto do qual sou parte acabada. Conheço, apenas, a mim e a mais 11 pequenos quadrados, aparentemente iguais.  Sim, aparentemente porque somos peças em azul e rosa, bordadas sobre linho, onde trama e urdidura perfazem, por centímetro quadrado, 30 fios. Contudo, não posso afirmar se temos a mesma quantidade de pontos e se fomos feitas por duas ou uma universalidade de mãos e, ainda, se a roca e a tensão dos dedos garantiram a uniformidade dos fios. Tenho estado em silêncio e meu tempo corre entre a imobilidade de uma gaveta ou de uma mala velha. Tocam-me quando sou transportada de um desses cantos a outros. Tenho poeira de mais de décadas. Fazem-me cócegas, mas não me deixam espirrar. Parece que fui projetada para ser um guardanapo. Pelo tamanho, entendo que eram para lábios pequenos, fechados,  e dedos. Jamais para proteção de roupa. E pelo que pude perceber da gula humana, guardanapo utilizado para servir um café, uma chávena de chá. Jamais uma feijoada. Considero-me bela e sei traduzir a intenção de olhos invejosos: gaveta ou mala velha de outra pessoa, de outra casa, não a permanência onde estou acomodada. Enfim, não sou dominada pela soberba, mas tenho orgulho do meu ser tão esmerado. Hoje fui retirada da mala e recebi o calor de um ferro. Fiquei embaçada com o vapor. Logo percebi que hidratou meus fios. Mas oh! Quentinha e ainda assimilando o meu espreguiçar, não percebi de momento. Fui usada para cobrir um copo de água. Não pela água, o meu infortúnio. Riqueza tão nobre e essencial, mereceria ser coberta com as mais ricas rendas, com os mais belos bordados, com as mais belas peças, iguais, em beleza, a mim. Fui usada...não! fui abusada para cobrir um copo de requeijão cheio de água. Não entendo mesmo a humanidade. Modelam-me à perfeição e depois se olvidam, não prestando atenção.

Adriana Gragnani

Junho 2015

17 de mai. de 2015

Monogramas


Monogramas feitos para enlaces matrimoniais. Riscos copiados das velhas revistas da DMC, importadas por livrarias brasileiras. As marcas entrelaçadas foram delicadamente bordadas em linho, cambraias, toalhas (de lavabo e de mesa) adamascadas, guardanapos, lençóis de percal ou nos simples panos de prato. Seja pelos vestígios dos riscos impressos nas revistas, seja pelos bordados ainda existentes em peças variadas que resistiram ao tempo, seja pelos pontos que compõem nossa memória, pouco sabemos da vida de mulheres e homens que nos idos das décadas de 30 e 40 do século XX uniram-se pelas tramas do tecido. A bordadeira conta histórias, mais que um  conto, muito além do que um ponto.

Adriana Gragnani maio 2015

2 de abr. de 2015

Lá vai o meu trolinho,o vagonite!

 

Conte um, dois e três, e vá em frente. Conte dois e suba rápido. Siga por 5 e mais um e dois, desça depressa. E siga na contagem, passe a linha, suba, volte, desça, vá. Um dois, feijão com arroz? Três e quatro...feijão no prato? Cinco e seis? Nada de inglês, tão pouco o chinês. Vagos preenchidos, pontos despejados, vagões de linhas, lá vai o meu trolinho, vai seguindo o seu caminho!!! Vagonetes com percurso elaborado, vagou o vagonite pelo tempo, mostruário bem bordado. Emoldurado, tá enquadrado, artimanha bem urdida, que tolheu o seu passeio.  Upa!

Abril 2015


27 de fev. de 2015

Apelo

Puxe-me, puxe-me!!! implorava a agulha ao alicate. Comigo carrego a linha que marcará delicadezas!!! Puxe-me!
Adriana - fev.2015

22 de fev. de 2015

Serpentina, adeus!

 
Com a Boca no Gargalo; Serpentina, Adeus; Eu sou mais eu; Desapego Intencional; Plantando Milho na Pedreira... restos furibundos, vozes longínquas que deixei prá trás na virada da noite da quarta-feira de cinzas de carnaval. Reencontro-me já formada- aqui neste salão binário, um sim, um não, um sim, um não, repicar em surdos-mudos - em foto, nos desenhos de Duayer e nos pontos e despontos de Adriana. Tantos filtros digitais não permitem sentir meus brilhos, a maciez de minha pele nesse primoroso linho belga. Com este não concorro, não sou máscara, sou quase uma dama fiorentina, confeitada de confetes a esconder minha careca.

21 de fev. de 2015

Abro o baú...


Abro o baú! Rememoreio sobre as mãos familiares. Vejo-me nas primeiras provas de bordado, nada livre, da escola onde fiz meu primário. Provas cujos paninhos 10 cm X 10 cm eram primorosamente preparados por minha mãe, com delicados biquinhos... de crochê. Transmissora da herança familiar, guardou 12 provinhas, que se iniciaram no meu segundo ano B, segunda aluna da lista de chamada de um colégio que não existe mais. Pirei desde sempre...

18 de fev. de 2015

O depois virá.

Eu que surjo, em frágeis alinhavos, sou o outro que se projeta em mim. Apresento-me quase sem força, finitude ou começo de vida – já nem sei mais - de uma quarta-feira de cinzas. Realça-me o perolado, falsa cor da concreção impulsionada pelo grão de areia, tão pequeno e no entanto capaz de turvar o mundo. Chuva! Limpa-me, traga-me as cores vivas! Dá-me desejos de virar o dia. Fev.2015 -

8 de fev. de 2015

As nódoas do cânhamo

 
 
Esse bordado inacabado, nesse cânhamo já todo manchado, vaga de casa em casa, sempre confinado em gavetas diversas, conhecedor das profundezas do escuro, há setenta e um pouco mais de anos. Já se impregnou de cânfora, sentiu o conforto do papel de seda branco, o receio da traça, o pó, o esquecimento. Seu projeto, que remonta aos confins, foi olhado e palpitado por olhos de mãe, filha, irmã. O planejamento foi feito, é de se observar: o corte do tecido, a escolha das cores, o tipo de ponto, o arrumar das linhas.  Trama e urdidura sentiram o calor das mãos, o arrepio da agulha fincando-lhes com novas tramas e urdiduras. Esse pedaço de pano caiu nas mãos de sobrinha que fica a se perguntar: tão pouco para seu término! Por que esse quase vazio? Foi o desencanto do desmanchar ou foi uma tristeza de amor? Foi um projeto para compor um antigo enxoval, um noivado desfeito? O cânhamo com suas nódoas, o bordado já feito, permanece silente. Fev.2015

4 de fev. de 2015

Bordando em Azul

 
Sem jeito, mesmo incomodada, escolho o algodão e mancho e pinto, lançando borrifadas de álcool e água, no pano pendurado no varal. Com pincel, mais chinfrim que possa existir, faço uns traços de árvores, bem rudes, bem árvores, longilíneas alturas. E eis que surge um pássaro, sem nome, sem asas, uma ave que corre delgadamente, entre nódoas e dores.
 

4 de out. de 2014

Lembrança pouca é bobagem


Se deu conta que, de um amor tão intenso, tinha sobrado apenas o direito de guardar a lembrança do cheiro de sabonete daquele corpo banhado. E era Lux.

25 de set. de 2014

En garde!!!

En garde! Disse a agulha para a linha. E do confronto que se vê agora, surgiu, no campo de batalha, um bordado, que se verá depois.

Mulher, seu nome

Há uma semana, colocaram-me pelo avesso, ego exposto de uma bordadeira que se inicia nas armas da linha, agulha e pano. Nós e mais nós, rebarbas da preguiça, em pinks e sub pinks, fúcsias para outros, preto e sub preto, laranja e sub salmão, confusão de inícios, id, eis-me! Superego do território, simples linho, velho pedaço de mais de 60 anos, permitida, agora, no verso moldado, bem comportado, eu. Adriana Setembro 2014

Mulher, seu nome é

Essa imagem arranhada, de uma mulher quase esgarçada, é fruto de meu olhar. De um amigo peguei o risco; o tecido eu já tinha. Com linhas e cores escolhidas avancei num território e bordei. Urdidura e trama maculadas pela ponta da agulha, nós em verso, frente nítida, as escolhas foram minhas. Se a mulher é quase que difusa, desleixada ou destoante, se eu quiser me vejo nela e respeito quem a vê, sem, contudo, criticá-la. As escolhas foram minhas e, nesse território, tão particular e soberano, ninguém mexe ou dá palpite, seja Marina, seja João, seja Luis, seja Francisco. Sigo eu com meu bordado que, se não alegra, não perturba. Adriana 31 de agosto de 2.014

Lembranças

Num dia qualquer, a gente pega uma peça qualquer de qualquer mãe nascida na década de 20 do século XX. Uma peça talvez nunca usada, mas de uma beleza qualquer. Um envelope para abrigar um pé de qualquer taça de cristal. Uma peça de um enxoval qualquer, que conserva sonhos quaisquer de mulheres quaisquer que se tornaram mães quaisquer de quaisquer filhas, que conservam lembranças em envelopes quaisquer.

6 de out. de 2013

Errática ave


Na imensidão da avenida asfáltica, o pássaro vagava. Prá lá e prá cá, procurava... uma minhoca? um grão de alpiste? um sobra qualquer? Na imensidão da avenida, bem pela manhã, quando as buzinas e motores ainda são fracos para atemorizar o próprio dia que surge, o pássaro vagava, pendularmente, com seu cocar de cardeal errante.

16 de set. de 2013

Perdeu-se, perdemos uma criança


Foi há uns seis meses. Estava sentado na entrada de um prédio na Av. Brigadeiro Luis António, próximo ao Viaduto Maria Paula. Educadamente pediu-me um troco. Olhei, reparei em suas roupas, pés descalços e sujos, e perguntei: o que você está fazendo aqui que não está na escola? Pergunta besta, mereceu uma resposta matreira: - Ah... já fui, pela manhã! - Mas são 11 horas! ponderei. - Saímos cedo... Comprei uma migalha, esmola com cara de coxinha, dei ao menino com cabelos castanhos claros, encaracolados, olhos de olhar o vago, diria até de um romantismo infantil, porque infância é bonita, é de ser sempre bem quista e amada... Ontem, encontrei-o! Parecia bastante feliz, sentado, mesmos pés descalços, sugava, em suprema felicidade uma lata de refrigerante, lábios quase do avesso, tamanha a força que usava. Dia seco, imaginei o líquido entrando pela goela, molhando a garganta de voz sumida. Sim, estava contente. Via-se pelas bochechas secas, que acompanhava o movimento da língua, e que se não era para um beijo estalado, era para sugar, sugar, sugar, sugar a latinha, sugando sonhos, imaginando imagens de prazer, o bem estar obtido com o nirvana prometido, o calor do sol, o afago do abraço, a infância bela, a criança do ECA, sugando os seus direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, proteção integral, todas as oportunidades e facilidades da vida, o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade, sugando os deveres da família, da comunidade, da sociedade, do poder público para a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, mais blás e blás, sugando o caldo do xarope aguado do refrigerante na latinha prata. Olhos fechados, em sonho enlevado, pálpebras a proteger os olhos de castanho vago, quase saltando, tão magro, naquela órbita que estava murcha, encovada e feia, cabeça rodeada pelos caracóis dos cabelos sujos. Nada me pediu tão profundamente entorpecido estava. Perdi a criança, perdemos a criança, tão próxima da Sé da fé, do Estado legal, da praça que é nossa. Mais uma.

Adriana Gragnani

Set 2013

11 de mai. de 2013

Outonais na Sé


A pomba girou e pensou: tô voando e cagando, tá?

18 de ago. de 2012

Minhas Crenças

Teve um momento em que parei. Azul do céu sobre cânhamo, avemaria, pontos diversos do ano letivo, de algum ano letivo de minha infância. Carreiras ordenadas, mãos de labor severo, um dois três passa a agulha e retorna. De casa em casa -  de ponto em ponto -  bordado inacabado, por fim achado.  Coloco a linha na agulha, dou um ponto e percebo todo o tempo já ido. O azul não tão forte, Maria um belo nome. Teve um momento que não parei. Escaneio e coloco na net...

28 de jun. de 2012

Sua majestade, el perro

No frio outonal
abrigou-se na esquina.
Queria o abraço do sol.

10 de jun. de 2012

Suspiro

Não é noite, não é dia. Pegue a cartilha e reze a Ave Maria


Indefinido momento, dorme o tempo, meio agonia, meio suspiro, em melancolia difusa.Vento se arreta, como a descansar o dia, sem descortinar a noite. É quando pássaro esconde a cabeça, estufa as penas e não pia, oculta-se, apenas. Apruma-se a árvore e, sem recolhimento, veta o natural farfalhar dos ramos e folhas. Do rio, se corre, não se sente. De peixe, não se vê e o pó não faz poeira. É instante de não sentir aromas, tão pouco de ouvir o barulho da colher na xícara. É hora de não esforço e atenção das gentes, andanças quase dormentes. Assim, suspenso no ar, o dia. Apenas a parasita progride, despontando ativa e, sem rezar a Ave Maria, impulsiona o breve lapso da passagem do dia à noite.